Recordar o que se quer esquecer...

«Heródoto imaginou os historiadores como guardiães da memória, a memória de feitos gloriosos. Eu prefiro ver os historiadores como os guardiães de factos incómodos, os esqueletos no armário da memória social. Existiu em tempos um oficial chamado Recordador. O título era na realidade um eufenismo para colector de impostos, o trabalho do oficial consistia em recordar às pessoas aquilo que elas gostariam de esquecer. Essa é uma das funções mais importantes do historiador.» Peter Burke, in O Mundo como Teatro: Estudos de Antropologia Histórica, p.251

Os Provérbios Flamengos (1559) de Bruegel

...mais de cem provérbios foram identificados neste fantástico quadro que representa o mundo às avessas...

Transmutação


Nascemos carne. E a cada dia
Nos vamos transformando em sonho.
Há sempre um patamar tristonho
Na escada em que antes não havia.

Há sempre um quarto em que vivemos
E nunca vimos. Sempre há um morto
Que bate à porta. Há sempre um porto
Que jamais houve e de onde viemos.

Há uma manhã cinza na feira
Que não se acaba há muitos anos.
Há uma mulher, nua entre panos,
Que não é nossa a vida inteira.

O tempo espera, inalterado
Como um licor, que nós subamos
Por ele abaixo, nós que vamos
Descendo-o acima em passo ousado.

Atrás há a aurora. À frente o nada.
No meio a confusão das luas.
Ah! quem voltasse às mesmas ruas
Em senso inverso, até a entrada.

Quem desse as costas à saída
Certa e voraz, e, dessa sorte,
Fosse afastando-se da morte
Até a primeira hora da vida

E seu mistério, e se encarnasse
Nos seus eus idos, e fugisse
Por si acima, até que ouvisse
O choro antigo, e ainda o passasse.

Nascemos carne, e ao sonho vamos.
Somos o fio que desfaz
Toda a tapeçaria, mas
Quem é que o puxa, nem sonhamos.

Vamos fazendo-nos de ar
De crianças rijas que já fomos,
Vamos como explodindo em gomos
De ser, um fruto a se espalhar.

Nossos amigos são de vento
Cada vez mais. As nossas casas
Grãos que o sol doura. Soam asas
No nosso cofre mais sedento.

Para isso apenas nos gerastes,
Para ser sonho, mães de sonho.
Há sempre um pássaro medonho
Nos nomeando entre umas hastes.

Há sempre um baile de sumidos
Na íntima praça inexistente.
Há um branco sol sempre presente
Na noite em que vamos perdidos.

Há um rosto cruel que nos exorta.
E escadas. E a manhã na feira
Que vai durando a vida inteira.
Há o patamar. E um beijo. E a porta.

Alexei Bueno

Soneto da fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vive-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espelhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius De Moraes

Central do Brasil (1998)


Quando você tiver cruzando as estradas, no seu caminhão enorme, eu espero que você lembre que fui eu a primeira pessoa a te fazer por a mão num volante.

O que tinha que ser

O que tinha que ser , música de Tom Jobim e Vinícius de Moraes interpretada por Elis Regina

Felix the Cat

Felix in Hollywood (1923)

Ítaca

Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado — não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria — nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes o quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.

Konstantinos Kavafys / Tradução de Jorge de Sena

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