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O Consolo da Filosofia

A Morte de Sócrates, de Jacques-Louis David



Procuramos consolo nas mais diversas coisas, porque não fazê-lo na Filosofia? Nem sempre é fácil, pois esta apresenta-se muitas vezes de difícil compreensão. É necessário simplificar a linguagem e criar uma ligação mais directa e real entre leitor e escritor. Alain de Botton faz isto de uma forma que me agrada muito. No seu livro, O Consolo da Filosofia, apresenta-nos o consolo para a impopularidade (Sócrates), a falta de dinheiro (Epicuro), a frustração (Séneca), a inadaptação (Montaigne), um coração destroçado (Schopenhauer) e as dificuldades (Nietzche). Um livro que sabe mesmo bem ler. Séneca está a consolar as minhas frustrações e estou a adorar.


Depois, vou consolar-me com o que o Pai Natal deixou-me no sapatinho, Os Filósofos e o Amor: Amar, de Sócrates a Simone de Beauvoir, de Aude Lancelin e Marie Lemonnier, com prefácio de Eduardo Lourenço. Sócrates, Platão, Lucrécio, Montaigne, Rousseau, Kant, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Arendt, Sartre e Simone de Beauvoir são tidos em conta para se falar do amor neste livro. E mais uma vez, a palavra consolo está presente. Diz no anúncio ao livro: "Caberá ao leitor a tarefa de decidir se eles saberão consolar-lhe os males de amor." É muito bom que a Filosofia nos ajude a lidar com os nossos problemas do dia-a-dia, mas não se pode ter em conta os filósofos unicamente para nos consolar. A Filosofia tem que ir muito além do consolo, apesar de muitas vezes saber tão bem nos retermos somente nisto.

Os Provérbios Flamengos (1559) de Bruegel

...mais de cem provérbios foram identificados neste fantástico quadro que representa o mundo às avessas...

Mar

© Hippolyte Flandrin

Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.
Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não, o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha, era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos e à lassidão embriagante do sol e do vinho.
Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco: "onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar" e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento coração das leoas em pedra.
Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher, acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente o que ela lhe disse ao separarem-se:
- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.
E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país. Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos, a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul, com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido, em lugar incerto, a meio da sua vida.
Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo, e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde, por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens e da pobreza do mundo.
Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou.
Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse, e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.
Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.

Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens, tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo, que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.


Al Berto, in O Anjo Mudo

Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti

© Nikolay Nikolayevich Gay


Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudades de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

Maria do Rosário Pedreira

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