Na morte da avó

não bastasse a humilhação pública de morrer
espera-se do corpo que cumpra com indiscutível
pompa o intolerável protocolo de ausentar-se

a penosa execução circular e nocturna do velório
a presença inconveniente dos agentes funerários
os adereços lutuosos a obscena maquilhagem

no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa
cerimónia (não há muito a dizer, sejamos honestos
e soa até a insulto que se pronuncie o nome de

Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito
– é quase tão imoral como alguém ter trazido uma
gravata com motivos facetos, uma camisa florida –

depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa
sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso
a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante

o avô vai buscar as memórias da infância (por que
razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há
na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia

como se aceitasse, com constrangedora submissão, que
o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem
para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia

a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez
da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria
contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota

Miguel Manso, in Santo Subito

A vez de Berlim...

Nunca me aborreço numa biblioteca. Quer dizer, posso aborrecer-me quando estou presa em leituras obrigatórias (que espécie me fazem as leituras acompanhadas de obrigação). O facto é que os meus olhos fogem sempre delas e escolhem, por sua livre vontade, em que livro parar. Na semana passada, pararam num livro que trouxe uma cidade com ele. É um dos livros da colecção Memórias, dirigida por Henry Dougier. A editora é a Terramar. Cada livro da colecção é dedicado a uma cidade com memórias marcantes. Lisboa, Sevilha, Londres, Toledo e Berlim são exemplos das cidades já tratadas. Eu parei em Berlim. Eu recuei ao período 1919 e 1933 . O título do livro é "Berlim, 1919-1933: Gigantismo, crise social e vanguarda: a extrema encarnação da modernidade". Paro em Berlim no momento em que o regime imperial desaba e a República Weimar se constitui. Uma república tantas vezes apelidada de república sem republicanos. Mas uma república que deixa algo claro: o Estado é Berlim. A cidade, sem dúvida, continua a destacar-se. Nos anos 20, a população passa para 4 milhões (1 milhão dos quais são operários) e, em extensão, torna-se a cidade mais vasta do mundo. Em termos de comunicações, conta com uma rede imensa. É uma cidade marcadamente industrial e invadida pela técnica. Mas este "gigantismo" a ela associado não é capaz de camuflar totalmente tudo o resto, o submundo de Berlim. A inflação, desemprego e lutas sociais são uma realidade. Estes anos em que vou permanecer, enquanto durar a leitura, são, certamente, intensos a nível político mas também de uma grande inovação artística. Que importantes são para compreendermos tudo o que se passa imediatamente a seguir (estes anos que mudaram o mundo). Prosseguirei na minha estadia, com vista a um mais completo entendimento da nossa História contemporânea. É crucial , sem dúvida, perceber o que se passou em Berlim ao longo do século XX para entendermos o mundo de hoje. Agora, vou voltar para Berlim...

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